Artigo interessantíssimo da Revista Vida Simples.
DEPOIS EU FAÇO
Afinal, por que tanto adiamos tarefas, decisões, planos, sonhos e mudanças em nossa vida? Eis um assunto para ser tratado aqui e agora
Afinal, por que tanto adiamos tarefas, decisões, planos, sonhos e mudanças em nossa vida? Eis um assunto para ser tratado aqui e agora
por Eugênio Mussak
Procrastinação vem do latim procrastinatione, descrita pelos dicionários como o ato de adiar, delongar, demorar, espaçar ou, simplesmente, transferir para outro dia. E os chegados à prática são chamados de procrastinadores - o que pode, para os menos avisados, soar como um elogio.
- Sabe o que você é? Um procrastinador!
- Que é isso. Bondade sua.
Do ponto de vista psicológico, a procrastinação pode ser entendida como uma dificuldade em definir prioridades a partir de elementos não emocionais. Em outras palavras, a dificuldade em definir o que vai ser feito a partir da importância que tem, e não a partir do prazer colhido em sua execução. Mas, falando com sinceridade, sabemos exatamente como isso funciona (que atire a primeira pedra quem nunca procrastinou).
Está claro que é uma espécie de arte, exige algum talento. Porque não há nada de errado em deixar para depois alguma coisa. Às vezes, é isso mesmo que temos de fazer: deixar para depois. Ora, é preciso saber gerenciar prioridades. Assim, deixar a gasolina chegar à reserva, cortar o cabelo na outra semana, prorrogar o início de uma nova atividade física ou espiritual, tudo isso é bem humano - cada um sabe onde aperta o calo, como diziam nossas avós. O problema é quando a procrastinação se arrasta, torna-se contumaz e envolve os outros. Aí ela começa a ficar perigosa, e a produzir conseqüências desastrosas.
Em 1955, o historiador inglês Cyril Northcote Parkinson (1909-1993) publicou nas paginas da revista The Economist uma tese muito interessante: as pessoas sempre utilizam para realizar uma tarefa, independentemente de sua importância, o máximo do tempo disponível. Trocando em miúdos: se você tiver uma hora para realizar uma tarefa, é esse o tempo que vai dispender para realizá-la, mas se dispuser de quatro dias, não tenha dúvida que irá utilizar todo esse tempo.
Essa tese acabou sendo tão bem compreendida e aceita por todo mundo, que se transformou em uma lei, a "lei de Parkinson", cujo enunciado é:
"O trabalho expande-se de modo a preencher o tempo disponível para sua realização".
A idéia dessa lei pode ser percebida praticamente todos os dias, tanto em nossa vida profissional quanto pessoal, se não em nós mesmos, em alguém que está por perto, convivendo conosco. Observe as pessoas ao seu redor, analise o comportamento delas e perceba que é isso mesmo. Dificilmente alguém antecipa a conclusão de uma tarefa, deixando o tempo livre para depois. Temos a impressão de que, ao utilizarmos todo o tempo que dispomos, estendendo nossa empreitada até o último minuto, faremos o trabalho melhor.
O que está errado nesse raciocínio é que não utilizamos todo o tempo disponível no trabalho, mas na procrastinação - o elemento oculto da história. De quatro dias disponíveis para a realização de um trabalho, existe grande chance que a concentração maior ocorra no último dia. E o pior é que os outros três, que poderiam ter sido mais bem utilizados, são carregados de uma certa "sensação de culpa", que fica assombrando nosso inconsciente como um fantasma que, se tivéssemos total autocontrole, poderíamos afastar com um sopro, usando o fôlego da responsabilidade.
A pior aplicação da lei de Parkinson dá-se quando a tarefa não tem prazo definido para ser realizada. Coisas como estudar espanhol, escrever um livro, plantar uma horta ou realizar um antigo sonho podem ser jogadas para um futuro incerto, e acabam nunca se realizando. E todo mundo conhece alguém que está esperando sabe-se lá o quê para "fazer o que sempre quis na vida". É a procrastinação tamanho GG, que dura até o último suspiro.
A verdade é que uma em quatro pessoas encontra-se neste momento praticando alguma modalidade de procrastinação. Talvez, aqui ou ali, a conseqüência seja desprezível, mas sempre ocorre algum prejuízo da eficiência e do resultado. Mas por que, afinal, nós procrastinamos? Qual o nível que define quando essa prática é apenas um comportamento normal e aceitável e quando passa a ser um hábito danoso à pessoa?
Na Case Western Reserve University, próxima a Cleveland, Ohio, Estados Unidos, os professores de psicologia Roy F. Baumeister e Dianne M. Tice dedicam-se ao estudo de alguns componentes da personalidade que interferem no comportamento e na produtividade das pessoas, tais como a auto-estima, a autoconfiança, o estresse, as relações e também a procrastinação.
Eles dizem que os procrastinadores mais freqüentes são os que têm menor consciência da realidade. Os sócios desse clube acreditam que a realidade desconfortável poderá ser mudada se for ignorada. É a síndrome do avestruz, que segundo a lenda enfia a cabeça num buraco. Ao relegar uma tarefa desagradável para outro momento, a pessoa espera, inconscientemente, que a mesma se resolva por conta própria durante esse tempo. Ora, quem dera.
Eis aí um comportamento extremo, desprovido de lucidez, de maturidade. É por isso que a procrastinação vira um problema no início da idade adulta, quando devemos dar sinais de independência, assumir responsabilidades por nossos próprios atos.
Batata frita no deserto
Procrastinar pode nos trazer um súbito conforto, por nos afastar da fonte de desprazer, mas esse alívio sempre será temporário, o que nos coloca em uma ciranda destrutiva, geradora de ansiedade. Por isso não é incomum a relação entre a procrastinação crônica e a depressão, sem que saibamos qual se instalou antes. A verdade é que elas se retroalimentam. Um outro aspecto curioso é que a procrastinação nem sempre deriva do desejo inconsciente de adiar o desprazer, mas também do desejo de prolongar a perspectiva do prazer. Equivale a esperar mais um pouco para tomar água, quando a sede já estiver insuportável.
Lembro-me de uma propaganda de refrigerante que mostrava um homem atravessando um deserto, entrando em um bar e pedindo um saco de batata frita. Ele queria sentir ainda mais sede antes de acabar com ela.
A necessidade biológica que temos de obter prazer e evitar sofrimento faz com que nosso cérebro crie mecanismos às vezes divertidos, às vezes prejudiciais. Por trás do comportamento procrastinador está a motivação - ou a falta dela. Motivação é a condição psicológica que move uma pessoa a praticar uma ação.
E está cada vez mais claro que somos movidos por esse combustível, e que ele não pode ser carregado de fora para dentro. É uma energia que as pessoas eficazes têm condições de produzir por si mesmas, espontaneamente.
Eis por que é tão fundamental uma visão clara da realidade e do que queremos para nós nesta vida: no fundo mesmo, o que nos afasta de uma determinada tarefa? Por que não nos sentimos motivados a realizá-la? Cada um deve saber perguntar e responder essas coisas intimamente.
Nas minhas observações, descobri que convencer os outros e a mim mesmo de que é melhor deixar pra amanhã, porque hoje não dá mais tempo, faltam alguns dados e, de qualquer maneira, não tem tanta pressa assim, etc., acaba consumindo mais energia do que a necessária para a realização da tarefa. Caiu uma ficha.
Dá até para listar alguns dos motivos internos, mentais, ligados ao hábito de procrastinar, e uma leitura deles pode ajudar no esclarecimento da questão (sem nenhuma intenção de classificar ninguém, mas se num ou outro perfil a carapuça lhe servir, por favor, não se acanhe):
- Dificuldade em lidar com o tempo. Às vezes perder a noção e não conseguir calcular o tempo necessário para a realização de uma tarefa;
- Necessidade imperiosa de evitar o desprazer. Não conseguir se concentrar em nada que gere desprazer ou que não gere prazer imediato, por não estabelecer relação entre esforços e resultados;
- Falta de noção de prioridade. Dificuldade em definir o que é importante e o que é urgente (muito comum hoje em dia, quando tudo parece importante e urgente).
- Estresse. Nesse estado, há uma tendência a escapes involuntários, a dedicar- se a tarefas secundárias como forma de alívio;
- Autoapreciação comprometida. Não conseguir ser senhor de suas ações, depender da ingerência alheia para apresentar alguma produtividade ou evitar procrastinações.
- Fazendo primeiro o que é importante, pois o prejuízo da procrastinação de uma tarefa menos importante é menor (infelizmente, o conceito "importante" não vem com manual de instruções, temos de decidir sozinhos);
- Colocando na frente as tarefas menos agradáveis, impedindo-se a dissipação de energia mental, que fica drenando durante o dia;
- Dedicando mais tempo a fazer o que é importante, mas não é urgente (quando for urgente já estará feito);
- Dando-se conta de que tarefas de execução desagradável, desde que realizadas com determinação, sempre dão resultados agradáveis;
- Percebendo que as coisas que há para fazer podem ser de três tipos: aquelas que esperamos de nós mesmos, aquelas que o meio onde estamos espera de nós e - o melhor dos mundos - aquelas que atendem nossos quereres e os dos outros.
Aliás, está no significado das palavras autonomia e heteronomia: autônomo (auto = próprio, nomos = norma, lei) é aquele que escreve suas próprias normas de conduta, ou que acata serenamente as normas gerais - não por medo de repreensão ou castigo, mas por aceitá-las como suas, como sendo verdadeiras; o heterônomo apenas obedece às normas estabelecidas por outras pessoas, resignado e triste, o que é bem diferente.
É claro que o que se espera do indivíduo adulto, no mínimo, é que ele seja autônomo, responsável, capaz de controlar sua própria vida, fazendo as coisas certas nos momentos certos, sem prejudicar ninguém. Uma coisa de cada vez, e com noção precisa da prioridade, da responsabilidade e do tempo. E veja: todos nós sabemos disso!
MUSSAK, Eugênio. Vida Simples, São Paulo: Ed. Abril, n. 4 , abril de 2006.
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